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Banheiro misto

Por Ana Kessler Albergue da Juventude Santa Cruz de Marcenado de Madrid, dezembro de 1995. Eu e três amigos chegamos estafados de tanto caminhar e carregar nossas pesadas mochilas. Nos instalamos e, mais do que qualquer coisa, eu só queria ir ao banheiro. Urgente. Soltei a bagagem no quarto e saí em busca da minha salvação. Procura daqui, procura dali e nada. Me contorcia. “Droga, onde é a porcaria do banheiro?”. Em nenhum lugar.

Já não aguentava mais peregrinar de um corredor a outro quando, por sorte, cruzei com um rapaz da Itália, enrolado numa toalha. Lá fui eu me informar, no meu italiano espanholado completamente precário: “Per favore, dove é el banho feminino?” Ele me apontou uma portinha de onde estava saindo um cara. “No, el banho fe-mi-ni-no”. Novamente ele apontou para lá. “Dai-me forças, meu Senhor”, pensei. Vamos começar do zero. “Prego, io.. fêmea. Tu, macho. Lá.. macho. Fêmea.. dove?” Ele riu. Quem não estava entendendo nada era eu. “Misto”, ele disse. E saiu se enxugando. “Misto?” Achei que não tinha escutado bem. Resolvi conferir. Era mesmo.


Ao entrar no banheiro, dei de cara com um paredão de espelhos em frente ao mictório masculino. Tinha um cara mijando. Me olhou e me cumprimentou com a cabeça - a que pensa. Retribuí com a maior naturalidade do mundo, mas por dentro eu queria morreeer de constrangimento, e passei reto, rumo ao setor de privadas. Que-vergonha-que-vergonha-que-vergonha!!! “Tudo bem. Vou ficar aqui só três dias mesmo. Além disso, não tem nada de mais banheiro misto. Fora o fato dos homens nunca puxarem a descarga, o resto eu tiro de letra”. Tentava me consolar.


De volta ao quarto, estava instaurada a polêmica: “gurias, vocês viram que o banheiro é misto?” “OOHHH!” “Como assim misto?” “Que absurdo!” Era o comentário geral. Na verdade, o tititi girava mais em torno do mulherio. Os homens não pareciam se importar muito em compartilhar suas intimidades conosco. Nós é que não estávamos acostumadas a sermos Evas no paraíso.


Tudo muito bonito, muito natural, mas no fundo era chato pra caramba. E a nossa privacidade feminina onde fica? Todos os nossos segredos de beleza, todas aquelas coisas que fazemos no banheiro e que os homens sempre se perguntam “o que elas tanto fazem no banheiro?”, assim desvendadas, desmascaradas sem piedade. Que vantagem há em ser mulher e não ter mistérios?


Sair do banho enrolada na toalha, nem pensar! Seria o mesmo que sair nua. Então, colocávamos aquele monte de sacolas plásticas pra dentro do chuveiro, uma com a roupa limpa, outra para a roupa suja, uma terceira com os cremes e shampoos, chinelo-de-dedo, toalha, escova de cabelo, secador. Pior do que não ter onde pendurar todas as tralhas, era não poder cantar no chuveiro. E se vestir se equilibrando num pé só, então, com o outro pé afogado até o tornozelo numa poça d’água que teimava em não descer pelo ralo? E fazer tudo isso rápido, tentando ser solidária com a enorme fila de homens (homens!) do outro lado da cortina (cortina!). Eu estava arrasada.


Mas o pior momento de todos, de incomparável repúdio, era a hora de evacuar. É, o famoso "número dois". Os homens parecem sentir prazer em anunciar que vão “soltar um barro”, todos machões, como se fosse a coisa mais linda do mundo, como se parissem uma criança rindo. Nós, mulheres, somos criadas ao contrário. Temos que ser discretas, silenciosas, delicadas, até parece que também não cagamos. Aliás, não cagamos mesmo: “vamos ao banheiro”.

E não existe coisa mais chata e constrangedora do que entrar numa cabine sanitária e ficar lá mais do que três minutos. Parece que todo mundo sabe que a gente não está só fazendo aquele xixizinho esperto. Parece que quem está do lado de fora já está até sentindo o cheiro do que a gente ainda nem fez por estar ali trancada e entupida, suando frio, envergonhada e reprimida, e apesar da vontade, sem a menor condição de colocar pra fora um cocozinho sequer, nem aqueles de cabritinho, porque está morta de vergonha que a coisa faça barulho quando cair na água e que lá de fora venha um silêncio de reprovação, que na verdade não passam de minhocas na nossa cabeça, mas vá explicar ao reto que ele tem que relaxar e, se puder, gozar. Impossível.


Então vem a pior parte quando, sim, perdemos mais de dez minutos sentada na privada, concentradas, pra sair dali sem ter feito nada e dar de cara com alguém que pensa que a gente fez alguma coisa, com aquele olhar acusador e irônico, e ter que então retribuir com um sorrisinho amarelo, menos pelo esforço inútil do que por vergonha, e sair de cabeça baixa, se sentindo uma neurótica fracassada, rezando pra que de madrugada, quando da próxima tentativa fatal e aliviadora, todos os seres do estabelecimento já estejam dormindo e então, finalmente, a gente possa “ir ao banheiro” em paz.


Gostaria muito de ter ouvido uma opinião masculina a respeito daquela divisão toda de território. Ou no mínimo, uma explicação coerente para tal fato. Eu mesma nunca entendi direito qual era o propósito daquela mistura sanitária de sexos. Vai ver que nunca passou pela cabeça dos espanhóis separá-los. E tem até uma certa lógica, afinal, vai tudo pela mesma água abaixo...


E assim passei meus primeiros dias na Espanha. Entre homens enrolados em toalhas pelos corredores e olhares curiosos através de espelhos, no final já estava até gostando daquela integración toda. “Bem que podia rolar um quartinho misto também, eu brincava”. Mal sabia o que me esperava em Barcelona...


*Texto de 1995.


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